terça-feira, 7 de junho de 2011

Carne viva (Livro novo) Texto I

Pegou um copo e o encheu de fracassos. Bebeu seus arrependimentos amargos em um único gole. Acendeu um cigarro sem maiores vontades em seus lábios pálidos e covardes. Tragou sem esperança e piedade toda a sua quase felicidade. Espalhou aleatoriamente as cinzas de si mesma pela emoção que nunca a invade. Apagou uma ponta acesa de ilusão na pele que falsamente arde. Levantou-se insegura como uma criança que aprendendo a andar sente medo ir ao chão da sua mais primitiva e proibida verdade. Foi até a janela da sua infância apavorada com a fantástica possibilidade de uma aterradora visão imaginária da realidade. Externamente se viu quem não mais era, uma pessoa muito mais feliz e sincera do que a mulher escondida nos escombros da sua solidão educada, formal e singela. Resolveu então descobrir no que se transformara sem o disfarce da maquiagem que a fazia uma tela. Queria saber por onde sangrara a mulher que seria se suas opções tivessem sido bem mais plenas dela. Foi até o armário com a alma completamente despida e como se escavasse as profundezas da terra abrindo ferida algo procurou. Diante do que achou seu coração por instantes paralisou. Agoniada incontrolada se recuperou. Pegou uma caixa onde sua adolescência sem rituais enterrara com a agressividade de uma fera alimentada pela carne putrefata da dor e seus demônios libertou. Quando a abriu se apavorou. Nela se refletiu. Reviu o que nunca contou. Pegou sua história e novamente a vestiu desorientada praticamente sem temor. Descolou do rosto sua reluzente mascara longe dos imaginários perigos da paixão que um dia sedutora provocou nos trapos de um sonhador e no segredo do quarto infernizado por fantasmas de sentimentos quase abandonados entre lágrimas e silêncios atormentados se deitou no chão frio do seu ínfimo espaço aos pedaços para negar a palavra que um dia verbalizou. Amor. Não dormiu. Se devorou. Queria fugir, mas não conseguia se nutrir da força necessária para resistir a razão que a alucinava quase febril seu desejo dominador. Cansada decidiu não mais lutar contra o nada que artificialmente a pariu. Reabriu seus rastros e começou a vagar entre os espinhos de cada recordação cravados a frio nas pétalas das folhas viradas no ausente brilho de seus olhos vazios. Pela primeira vez em uma quase eternidade se encontrava viva caminhando pelas linhas infinitas do seu diário. Secreto livro partido em pedaços pela confissão de um corpo envelhecido, vencido e embriagado pelo tempo.

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