domingo, 19 de junho de 2011

Carne viva - Texto II (A retomada do diário)

Última. Nada mais. Só. Mais uma. Sem palavras. Esquecida. Amarrotada de fingimentos pelo tempo. Implacável, amargo e irrevogavelmente lento. Amarelada por ausências que cristalizadas ainda me ardem por dentro paralisadas pelas lágrimas que não se verteram quando eram esperadas como as principais convidadas no ato que se encenava em teatralizado momento e manchada pela substância friamente abstrata da inconsistência compacta e ferozmente inalterada do meu clamoroso silêncio. Fruto imaturo de um final que como promessa foi redigido entre palavras decompostas de tanto apodrecimento que eu no conforto da máscara premeditada esculpida a decepções e mágoas por mãos cadaverizadas não mais me lembro. Se foi. Cumprido. Duvido. Não me surpreendo. Agora escrevo com outros tons sangrentos na folha abandonada que quase em branco ainda repousa pálida no meu diário assombrado por pensamentos. Mal ditos. Lugar onde hoje me habitam retratados com a disfarçada arte de um esfarrapado convencimento fantasmas devoradores de paz e amplificadores dos meus cruéis, inexplicáveis e indisfarçáveis gritos amenos, íntimo confessionário falsamente imaculado pela grandiosidade dos arrependimentos que diariamente mato e ressuscito. Sigo. Desbravando pelo papel com meu coração do corpo injustamente banido a rota impiedosamente escavada durante a construção interminada da obra visceral que excessivamente estagnada me tornou lapidada de esquecimentos infinitos. Enfim compreendo. Em cada traço procuro com meus dedos desesperançados em incompleto adormecimento o passado arrancado do universo acinzentado que habito por letras derramadas ao vento para cicatrizar carne a carne, pedaço a pedaço, ferimento a ferimento, a vida que consumi alucinada no transcorrer dos meus fracassos disfarçados de emocional comprometimento. Noturna desfaleço minha consciência sem abrigo. Na escuridão da razão as avessas não o leio que digo. Para me iluminar com um olhar não assumido acendo a chama do meu inferno artificialmente construído. Fogueira santa de onde retiro levemente os restos da pele que me reveste e defende como se folheasse um livro. Reabro com angústia e sofrimento as marcas das lembranças esgarçadas daquilo que só a ele foi contado mesmo quando não visualizado pelos meus olhos embaçados ao extremo como meio de exorcizar os monstros que criei temendo em vida ter morrido. Me escrevo, repenso, declaro e não admito. O que me fez negar tudo o que a meu respeito descobri neste mundo tão complexa e intensamente distorcido? Como posso saber se sou exatamente aquilo que lembro e reflito? Ficciono-me?

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